quarta-feira, 26 de junho de 2013

VIAGENS NA HISTÓRIA - 24

CIDADES SOBREPOSTAS

É uma verdade que, de tão evidente, acaba por ficar oculta, porque ninguém pensa nela: a vida de uma cidade não é apenas aquilo que nós vemos, as casas, as pessoas, os carros a passarem, aqui e agora; é também o que nela aconteceu no passado — sobretudo, em certos lugares especiais, que por esses acontecimentos ficaram ligados à sua história. Uma cidade é, no fundo, a sobreposição de várias cidades.
O que vos proponho é um breve passeio por Lisboa, parando em certos lugares que ficaram marcados por sucessos históricos — embora, hoje, pouco reste dessas marcas.
Evitemos os sítios óbvios, como o Terreiro do Paço (início da Restauração de 1640, aclamação de D. João IV, etc.) e o castelo de S. Jorge, que, esse, é toda uma enciclopédia. Mas, não longe do castelo, fica o Limoeiro, onde hoje funciona o Centro de Estudos Judiciários e onde, durante longos anos, funcionou o mais conhecido estabelecimento prisional de Lisboa. Aí se encontram ainda os vestígios de um paço real e era nele que se encontravam D. Leonor Teles e o conde Andeiro quando, a 6 de Dezembro de 1383, o Mestre de Avis lá entrou para matar o favorito da rainha regente. Foi, pois, nesse lugar que se juntou depois o povo de Lisboa, levantado por Álvaro Pais, para aclamar o Mestre e insultar a rainha — ou seja, foi nesse lugar que se deu o primeiro episódio decisivo da revolução que colocou no poder uma nova dinastia.
Mas, descendo um pouco, chega-se à Sé; e, nesse mesmo dia 6 de Dezembro, pouco após a morte do Andeiro, aí se juntou também a multidão enraivecida, porque o bispo de Lisboa, D. Martinho, não mandara repicar os sinos, como exigiam os populares, que forçaram as portas. O bispo, que, azar o seu, era castelhano, refugiou-se numa das torres e de lá o atiraram para a rua, com grande soma de gritos e de insultos — os insultos ainda hoje se podem ouvir, mas trocam-se entre automobilistas.
Vamos agora às proximidades do mosteiro dos Jerónimos, que, esse, é um dos tais lugares óbvios, de modo que, de momento, não entremos; em vez disso, vamos aos pastéis de Belém. Ora, a casa mais conhecida que os vende está construída em terreno maldito — ou, pelo menos, era isso o que o marquês de Pombal havia decidido. Mesmo ao lado da pastelaria, encontra-se o Beco do Chão Salgado; entrando nele, depara-se com um marco de pedra no qual está escrita a maldição pombalina. Isto porque em todo aquele terreno, hoje coberto de construções — com excepção do beco — se erguia, no século XVIII, o palácio dos duques de Aveiro. Ora, como se sabe, o duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas, foi considerado culpado no caso do atentado contra D. José I e executado publicamente em Belém. O seu palácio foi arrasado e o chão coberto de sal — daí o nome do beco — e colocou-se ali o tal marco, anunciando que naquele terreno jamais se poderia construir. O que não se cumpriu, como pode ver quem lá vá; porém, o marco e o beco ainda evocam a tragédia.
Enfim, o último lugar cuja visita hoje proponho é a zona do Arco do Cego ou, mais precisamente, as proximidades do antigo liceu (hoje escola) D. Filipa de Lencastre. Aí havia uma lápida, que mais recentemente foi deslocada — sem cerimónia — para o pequeno jardim que fica junto do gigantesco edifício da Caixa Geral de Depósitos.
Essa lápida comemora a intervenção da rainha Santa Isabel, quando as tropas do rei D. Dinis e as do seu herdeiro, o futuro Afonso IV, se defrontavam no início de uma batalha de Alvalade que não chegou a realizar-se, porque a rainha, que fora avisada, veio de Odivelas, onde se encontrava, e meteu-se, sozinha, entre os dois exércitos, forçando-os a baixar as armas.
Termino assim esta peregrinação por outros tempos da cidade de Lisboa, porque é bonito rematar com um acto de paz.

João Aguiar

"Este Padrão, que é Património do Estado, recorda a acção pacificadora da Raínha Santa Isabel, na primavera de 1323, quando duas facções de portugueses iniciavam um combate fratricida, ela acorreu ao lugar de Alvalade e, caminhando entre as fileiras inimigas foi onde el rei estava, e donde el rei estava tornou ao infante, e por vezes, vindo de uma parte para outra tratou entre eles por tal maneira que o infante fosse beijar as mãos de seu pai, e el-rei benzesse seu filho, e partiram dali amigos."