sábado, 10 de novembro de 2012

VIAGENS NA HISTÓRIA 04


ESTADOS DE GRAÇA

Uma das utilidades da História é servir-nos de referência para o tempo presente. Assim: se atravessamos um momento de relativa prosperidade ou grande orgulho nacional, convém-nos olhar momentos passados e considerar as asneiras ou as inconveniências cometidas, para ficarmos sóbrios e evitarmos reincidências; e, em tempos deprimidos, quando o nosso moral colectivo está em baixa, é recomendável considerar outros tempos em que o país, entrado numa espécie de «estado de graça» — não sem imperfeições, evidentemente —, se colocou na vanguarda ou reagiu com eficácia a circunstâncias adversas; isto para evitar o enjoativo e destrutivo processo de autoflagelação e de indiferença que nada corrige e só destrói.
Como terão já percebido, é a esta utilização da História que vou referir-me, já que muito raramente atravessámos um período tão degradado como o actual. Precisamos urgentemente de recordar alguns «estados de graça», entre os vários que tivemos — e não incluo, sequer, o tão evocado período das navegações e descobrimentos.
Assim, convido-vos a viajar, antes de mais, até à revolução de 1383 – 1385. Estávamos, na altura, em plena crise: enfraquecidos por três guerras desastrosas, sem Rei, e na iminência de vermos aclamar D. Beatriz, que casara com o rei de Castela, o que significava, obviamente, uma união das duas coroas. Por isso se fez a revolução e ela colocou-nos na vanguarda política da Europa. Pela primeira vez, uma boa parte da população agiu como povo — uma acção política, uma acção que recusou os princípios consagrados da sucessão dinástica e os substituiu por outros, com a eleição, em cortes, de um novo rei (D. João I) que era um filho bastardo. Pela primeira vez, a «arraia miúda» levantou-se por uma causa política e juntou-se a outras classes sociais, quando não as pressionou. Pela primeira vez, uma parte substancial do país actuou como nação. Que me lembre, tal não acontecera ainda, nestes termos, em toda a Europa.
A segunda viagem leva-nos ao período que se seguiu a 1640. Novamente, um Portugal extremamente enfraquecido. Mas, apesar de todas as deficiências, é prodigioso como foi possível manter (e vencer) uma guerra que durou mais de vinte anos e que não se travou somente na frente militar nem somente dentro do rectângulo: éramos atacados em várias frentes, em toda a extensão do já decadente império, tínhamos de obter o reconhecimento diplomático da Europa, refazer o exército, a marinha — e, ao mesmo tempo, a economia. E, apesar de tudo isso, foi-nos possível salvar o principal e vencer essa guerra de mais de dois decénios.
Para a terceira viagem, não precisamos de ir tão longe no tempo: somente aos anos 70 do século XX. Refiro-me à integração do mais de meio milhão de pessoas que entraram no país, vindas de África, no início e no seguimento do processo de descolonização. Evidentemente, houve traumas, problemas, disfunções; mas, numa perspectiva global, é notável que aquela integração fosse tão rápida, tão pacífica e, julgo que podemos dizê-lo, tão eficiente. Note-se que não me refiro apenas às medidas tomadas pelas autoridades. Refiro-me também, quase diria sobretudo, à atitude dos próprios retornados e ao seu esforço; e também à população no seio da qual se instalaram ou reinstalaram. Atritos? Alguns, sim — nada que se compare ao longo trauma do regresso dos pieds-noirs idos da Argélia para França.
Repito: nenhum destes «momentos de graça» foi perfeito. A perfeição, como se sabe, não é deste mundo. Mas, dentro do possível, fizemos o melhor. E, num momento como o actual, não será descabido recordá-lo. Não para meditarmos lamurientamente sobre o passado, mas antes para...
Para acordarmos. O que já não seria nada mau.
João Aguiar
Capela da Memória - Cabo Espichel

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