domingo, 30 de setembro de 2012

PEQUENOS TEXTOS


O fundamentalismo anti-tabagista

Este não é um texto poético destinado a cantar a mística do tabaco. Não sou, aliás, um fundamentalista do tabaco - tanto assim, que já passei períodos de dois ou mais anos sem fumar. E se atingisse uma permanente paz interior, um permanente estar-bem comigo próprio e com o mundo, talvez abandonasse outra vez o fumo.
Talvez, mas não é certo. Porque me parece evidente que hoje em dia o fundamentalismo anti-tabagista é um perigo que deve, que tem de ser combatido por todos os meios, incluindo, se necessário, a militância, pois nessa luta joga-se a liberdade, a inteligência e o bom senso da espécie humana. Não acreditam? Esperem até que Portugal passe a macaquear o Estrangeiro (essa misteriosa entidade) também neste domínio; nessa altura, quando a Polícia lhes entrar em casa porque o vizinho de cima se queixou de que, ao passar na escada, aspirou o fumo de um cigarro invisível e prevaricador, voltaremos a falar.
Portanto, é bem possível que, mesmo tendo eu atingido aquele estado de iluminação e de serenidade que dispensa qualquer apoio porque nele se desconhecem tensões ou angústias, é bem possível, repito, que conserve os meus cachimbos em uso. Civilizadamente, continuarei a abster-me de os acender naqueles locais onde o senso comum e a educação me dizem que posso incomodar seriamente o meu próximo. Mas continuarei a fumar fora desses locais, por solidariedade para com as vítimas do novo sistema ditatorial que se adivinha no horizonte.
Já estão, implicitamente, apontadas as principais razões que me levam a fumar.
Aqueles que pensam que, por exemplo, quem vive da escrita há-de ser uma pessoa serena e contente, por ter uma profissão coincidente com a sua vocação, são os mesmos que acham que o local de trabalho ideal para um escritor é em plena natureza, ouvindo pipilar os passarinhos e todos esses lugares-comuns super-estafados. Ou seja, são aqueles que não fazem a mínima ideia do que é o trabalho da escrita e por conseguinte ignoram tudo sobre as tensões internas que ele é capaz de provocar. Eu, que vos escrevo neste momento estas simples palavras, tenho o cachimbo apertado entre os dentes para ver se consigo alinhar, com um mínimo de harmonia e de gramática, tudo aquilo em que estou a pensar.
É mau para a saúde? Admito. Desde que nascemos, nós começamos a prejudicar a nossa saúde. Amar prejudica a saúde, cria ansiedades péssimas para o ritmo cardíaco e a tensão arterial. Comer é perigosíssimo, não sei se sabem. Beber, nem se fala - mesmo a água já não é o que era. Vestir uma camisa é um risco. Sair à rua é temeridade e ficar em casa é inconsciência pura. Por outro lado - o provérbio é conhecido e não fui eu que o inventei -, tudo aquilo que dá prazer e nos consola da experiência traumatizante que é a vida, ou faz mal à saúde ou é pecado. Muitas dessas coisas acumulam os inconvenientes: fazem mal e são pecados.
Por isso, humildemente, eu me assumo como pecador. Mas tenho como única droga - não direi como único pecado - o tabaco. Podia ser pior, não?
Bem sei: prejudico o meu semelhante. Pelo menos, é o que dizem as campanhas e os médicos.
Acontece, porém, que o meu semelhante, mesmo aquele que não fuma, faz gala em prejudicar-me. E eu, que faço?
Vou dizer-lhes: sofro em silêncio.
Até se descobrir que o futebol provoca o cancro, terei de suportar os grandes rituais da nova religião - e só o espectáculo da saída de um templo, perdão, de um estádio, me causa calafrios. Mas sofro esse prejuízo em silêncio, porque vivo em sociedade.
Até se descobrir que a música do Marco Paulo deteriora a vista e as funções renais, eu terei de a ouvir, excepto em minha casa. No entanto, não me passa pela cabeça lançar uma campanha. Sofro o prejuízo em silêncio, porque vivo em sociedade.
Até se descobrir que as actuais programações televisivas estão na origem do declínio da espécie, além de provocarem a cárie, eu terei de as suportar. No entanto, a única coisa que faço é desligar o meu receptor, sem que me passe pela cabeça desligar os receptores alheios. Sofro o prejuízo em silêncio, porque vivo em sociedade.
Todos nós, vivendo em sociedade, sofremos mais ou menos em silêncio. Excepto os fundamentalistas do anti-tabagismo.
Entretanto, vou confessar-lhes, o cachimbo é, para mim, mais do que um meio de acalmar tensões. Ele tem sido, muitas vezes, uma defesa contra os prejuízos sofridos em silêncio.
Quando estou num cocktail ou reunião social afim, e quero ir-me embora mas ainda não é decente, e vejo-me encalhado contra uma mesa sem saber o que hei-de fazer nem o que dizer, sobretudo porque alguém acabou de perguntar-me algo sobre o último discurso do primeiro-ministro e eu esqueci-me de ler o jornal.
Ou quando, para voltar a assunto já mencionado, a conversa à minha volta aborda temas religiosos, como a eleição do dr. Santana Lopes para o sólio pontifical do Sporting.
Ou quando apanho um engarrafamento.
Ou quando...
Enfim: nessas e noutras ocasiões, em vez de morder o meu próximo, eu mordo o meu cachimbo.
São raros os meus cachimbos que têm a boquilha inteira.
Já se vê, por aqui, a sua utilidade cívica.
João Aguiar


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