sábado, 2 de abril de 2011

CRÓNICAS

À ESPERA DO FANTASMA
À chegada, olhei à minha volta e compreendi, sem necessidade de ler folheto algum, que houvera ali a preocupação de manter a traça monástica. Portanto, instalei-me, fui espreitar o claustro e a «capela gótica» e a antiga igreja, passei pela sala do capítulo. E reflecti, cheio de esperança: «Bem, com os antecedentes do edifício, dá para contar, quase certamente, com a aparição do fantasma de um monge».
Havia, claro, o risco de me sair algum bojudo sargento de infantaria, pois que por lá passaram também dois regimentos. Mas eu apostava no monge.
Feita a aposta, concentrei-me na outra questão essencial: «O que é que eu vou fazer aqui, durante três dias?!»
Veja-se até que ponto cheguei a Beja alienado e esquecido de mim mesmo. Esquecido também de que me encontrava agora em pleno e profundo Alentejo, onde, apesar de tudo, o tempo continua a ser outro; e muito outro o seu ritmo. «Devagar ou parado», dizem os lisboetas e demais citadinos exasperados que já não sabem como a Terra funciona e respira.
Mas a Terra, quando lhe damos essa oportunidade, tem meios subtis para nos fazer ouvir a sua voz. Portanto, não tardei a perceber que precisava de dormir uma sesta. A seguir, percebi que a piscina estava a chamar por mim.
No entanto, o grande acontecimento veio à noite. Durante as primeiras horas, não sei quantas, dormi profundamente; depois acordei e, a partir de então, foi uma sequência de vigília e de sonhos agitados, fatigantes, a culminar numa daquelas estranhas experiências de «sonho lúcido» (a pessoa sabe que está a dormir e que está a sonhar; isto não é invenção minha, o fenómeno está mesmo a ser estudado em laboratórios).
Igreja - Pousada de S. Francisco

Porquê uma tal noite? Dera-me bem com o quarto, a cama e a almofada. Jantara muito levemente. O fantasma não respondera à chamada.
Adiante. Dia seguinte: visita ao Museu Regional, instalado em mais um convento; aí, a presença obsessiva — na igreja e no claustro, em altares e andores de procissão — de S. João Baptista e S. João Evangelista, logo por acaso os meus padroeiros, visto que têm o meu nome, ou eu o deles. Visita ao castelo e corajosa escalada ao alto da Torre de Menagem: Beja inteira à minha volta, pequena e resplandecente no seu branco, e, mais além, a planície aberta no seu dourado pós-ceifa, a planície que eu tantas vezes cruzei no passado e que, entendo agora, nunca é monótona; um mistério que nem tento desvendar. E uma quase-ausência, abençoada, do mais repugnante animal português da era presente, a grua de construção civil.
No fim do dia, um pensamento súbito: «Eu passava bem aqui uns quinze dias, ou mais, desde que tivesse uns livros comigo…». E a seguir: «Talvez até um ano inteiro, com papel para escrever e música para ouvir». O que respondia àquela questão sobre o que fazer. E depois, à noite (nessa e na seguinte), um sono de que nada posso dizer, porque foi demasiado profundo para deixar memórias.
Quanto à agitação do primeiro dia, sei o que foi: chama-se descompressão.
Quanto aos agentes dessa descompressão, ponho hipóteses: ou foi Beja, os dois S. João, a planície e a quase-falta de gruas…
Ou, afinal de contas, o fantasma respondeu mesmo à chamada. E era de certeza um monge franciscano.
João Aguiar
Claustro - Pousada de S. rancisco

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