segunda-feira, 7 de março de 2011

SINAL NOVE

Esta história, embora simples e breve, compreende três capítulos. 
O tempo do primeiro remonta há vários anos, mais de dez, e o local da acção é o Porto Interior de Macau. As personagens: um jovem fotógrafo, um velho marinheiro, patrão de um junco, e uma rapariga de profissão inconfessável.
O jovem fotógrafo era eu; tinha recebido uma encomenda, captar imagens de toda a costa de Macau, incluindo as ilhas. O patrão de junco era o meu amigo Cheong-Pac, que me viu crescer e muitas vezes me levou consigo em navegações à procura dos piratas – como ele dizia, para falar à minha imaginação. Diante da tripulação eu chamava-lhe A-Pac, mas quando estávamos sós era vulgar chamar-lhe Tio Pac. Só o fazia quando estávamos sós porque era um hábito da infância que não queríamos partilhar com ninguém. 
O Tio Pac ia oferecer-me nesse dia a pequena circum-navegação exigida pela minha reportagem fotográfica. O seu junco era o Dragão Contente – não que este fosse o verdadeiro nome, mas sim o que eu lhe pusera em miúdo, e nunca lhe chamei outra coisa.
Quanto à rapariga, andava com outras colegas de profissão à cata de turistas na zona do Porto Interior. Pelo menos, foi o que me pareceu e havia razões para chegar a essa conclusão: estava integrada num grupo de graciosas profissionais que se metiam descaradamente com todos os homens que passavam. Nesse tempo, se bem me lembro, aquela não seria uma das principais zonas de caça, porém a polícia havia feito, na véspera, uma rusga nas áreas operacionais e os agentes ainda andavam por lá.
Eu e o Tio Pac seguíamos a pé, a caminho do junco, e a nossa rota cruzava o enxame. Ao ver aquela barragem sexual, ele desviou-se, o que o obrigou a abandonar o passeio, e eu segui-lhe o exemplo. Foi então que a rapariga veio ter connosco. Por acaso – não; porque era muito bonita, o que me chamou a atenção –, eu estivera, segundos antes, a olhá-la e reparara que não se comportava como as outras peripatéticas.
(Peripatéticas, isto é: as que funcionam em movimento, as que fazem o trottoir. É um eufemismo francês de origem grega. Encontro-lhe grandes méritos poéticos e filosóficos.)
Dizia eu que a rapariga não se comportava como as outras: no meio daquele pequeno bando barulhento e desavergonhado, mantinha-se muito calada e quase quieta.
Isto até ao momento em que nos viu, ao A-Pac e a mim, passando na rua, manobrando para ficarmos equidistantes do passeio e da fila de carros que desfilavam com o costumado ímpeto. Nessa altura, avançou num passo decidido, veio ter connosco e abordou sem cerimónias o meu companheiro, em cantonense:
– A-Pac, vais embarcar com este teu jovem amigo?
Como é evidente, não consegui dominar uma gargalhada que me subiu, alegre, pela garganta: o velho Pac, o Tio Pac, andava tu cá tu lá com as peripatéticas. Mentalmente, logo compus um discurso sobre vigor sexual e maroteira, que lhe reservava para quando nos encontrássemos a bordo.
Mas o Tio Pac olhou-a com profunda surpresa e perguntou-lhe quem ela era e como o conhecia. A moça respondeu: – Toda a gente te conhece no Porto Interior. E já me viste muitas vezes, mas nunca reparaste na minha cara. Aqui, no sítio onde nos encontramos, o meu nome é Jasmim.
Claro, havia de ser um nome de guerra. A sua revelação não pareceu iluminar o A-Pac, que lhe perguntou, desconfiado, o que queria dele.
– Quero embarcar contigo e com o teu amigo – respondeu, olhando--me. Já não era sem tempo que o fizesse, murmurou a minha vaidade.
– Embarcar? – o A-Pac soltou um risinho. Nada disso, o seu junco não era um barco de flores. Não sei se ele era suficientemente velho para ter visto um desses bordéis flutuantes, mas talvez lhe tivessem contado sobre eles.
Depois da negativa, olhou-me de soslaio e cedeu, de modo comovente, a uma fraqueza, que era a sua amizade por mim: – A não ser que tu queiras... – murmurou.
Abanei a cabeça, repliquei: – Tenho trabalho, muito trabalho à minha frente... – e depois completei em português, tão depressa que nem a Jasmim nem o Tio Pac poderiam entender-me: – Desculpa lá, filha, mas hoje não.
Era um aparte ligeiramente ordinário. O Tio Pac não o entendeu, certamente; ela, não sei. Disse-me, com um sorriso rápido:
– Fica para outra ocasião. Mas há-de acontecer.
E afastou-se. E assim termina o primeiro capítulo.

O segundo capítulo passa-se alguns anos mais tarde. O início da acção é quase igual, porém as diferenças são muitíssimo importantes.
Uma vez mais, estávamos no Porto Interior, A-Pac e eu, a caminho do seu junco. Agora, vamos às diferenças: eu não ia fazer reportagem alguma, eu estava – por vias de coisas diversas que me tinham acontecido nos últimos tempos – a ir muito seriamente pela retrete a baixo, pronto a puxar o autoclismo atrás de mim (forma rendilhada e literária de dizer que sofria de aguda depressão).
Cheong-Pac fora procurar-me nessa manhã, fazendo o seu ar zangado, com que me metia medo quando eu era criança, e dissera-me: vens comigo, nem que seja à força. Vamos navegar. Hoje não saímos para a pesca, saímos só para navegar.
Mas vem aí um tufão, objectei. E era verdade; uma outra diferença, em relação ao primeiro capítulo da história, está na época do ano – o mês, agora, era Agosto, o ar carregava em suspensão quase tanta água como o Rio das Pérolas, o termómetro não parava de subir. E no mastro da Guia estava içado, desde as seis horas, o Sinal Um de tufão.
A minha objecção, evidentemente, não comoveu um velho nauta como ele. – O Sinal um, o que é o Sinal Um? – repontou. – Toca a andar!
E assim nos encontrávamos, uma vez mais, cruzando o Porto Interior em demanda do Dragão Contente. Havia menos gente na rua, não por causa do Sinal Um mas por causa da chuva, que caía miudinha porém com entusiasmo, tanto assim que estávamos já encharcados de água morna.
Então, tal como sucedera anos antes, uma rapariga veio ter connosco, abordou o Tio Pac, disse-lhe que queria embarcar no seu junco.
Não veio de um bando de peripatéticas, pois no passeio pouca gente havia. Naturalmente, estava tão encharcada  como nós, o cabelo colava-se-lhe à cara. Mas não me custou reconhecê-la, porque não esquecera o seu rosto. E o Tio Pac provou que a idade não lhe roubara as faculdades: 
– Por onde tens andado, Jasmim? – perguntou com um risinho malandro.
Isso não interessa, respondeu ela; o que interessa é que eu quero ir com vocês.
Preparei-me para ouvir uma recusa enfática, porque o Tio Pac é muito selectivo quanto às pessoas que admite a bordo do seu junco. Portanto, fiquei altamente surpreso ao ouvi-lo dizer que sim, podia vir. Uma olhadela lançada na minha direcção revelou-me o fundo do seu pensamento: era, no entender do velhote, uma sábia terapia para o negrume que me ia na alma.
– Mas, A-Pac, olha que não é preciso... – comecei eu a murmurar, porém ele interrompeu-me: – Ta-ta-ta! Já disse! Quem manda são os velhos.
Dez minutos mais tarde, o Dragão Contente abandonava o Porto Interior. Levava pouca gente a bordo: o Tio Pac, Chen-Lo – um dos homens da tripulação e seu grande amigalhaço –, Jasmim e eu. O junco, interessará dizer, estava equipado com um motor e saímos do porto com ele a funcionar, as velas ficaram recolhidas.

E ainda bem que assim ficaram. Quando Cheong-Pac tomou a direcção da Taipa, subia, na Doca D. Carlos I, na Guia e na Fortaleza do Monte, o Sinal Três de tufão. Isto eu só o soube pouco depois, porque na altura estava distraído a ver a água revolta e a agarrar-me para não perder o equilíbrio. Chen-Lo ocupava-se do leme, com o Tio Pac a seu lado, e Jasmim, a bela Jasmim, que ainda não abrira a boca desde que embarcara, postara-se à proa, sem dificuldade aparente, apesar do balanço, que se tornava cada vez mais forte. Parecia uma carranca de navio antigo – uma carranca particularmente graciosa, acrescentarei.
De súbito ouvi, trazida pelo vento, a voz do velho rádio de pilhas que estava... onde estava ele, a propósito? Não sei bem. De qualquer modo: estava ligado e sintonizado, claro, para a emissão em cantonense. A recepção era deficiente, mas chegou para eu perceber que a locutora anunciava a passagem de Sinal Um a Sinal Três e fazia as recomendações habituais. Virei-me para os meus anfitriões e gritei:
– A-Pac! Sinal Três! É melhor voltarmos!
Sucedeu então o primeiro prodígio daquele dia: o Tio Pac largou uma larga gargalhada e respondeu:
– Do que tu precisas é deste vento, para te limpar dos espíritos malfazejos!
E manteve a rota. O trânsito na ponte da Taipa (à época só havia uma) fazia-se com especial lentidão – lentidão maior, ao que me pareceu, do que era habitual com o Sinal Três. Mas talvez fosse impressão minha. Tentei dar atenção ao que dizia a rádio, porém agora só conseguia ouvir um cacarejar indistinto. 
O Dragão Contente cavalgava as ondas. Parecia-me cada vez menos contente, é certo, porque rangia como nunca, num lamento ruidoso. Agarrado como lapa à sua madeira e a uma corda, reflecti então que o Tio Pac, na sua aparente loucura, me aplicara a terapia certa: naquele momento, os meus fantasmas interiores iam longe, varridos pelo vento cuja força crescente cavava precipícios na superfície das águas. Naquele momento, a vida, a vida e a sua conservação, pareciam-me os bens supremos, ao lado dos quais todos os meus conflitos e preocupações e problemas faziam figura insignificante.
A questão, agora, pensei, é ver se consigo voltar a terra com estes bens cuja noção vim buscar ao mar encapelado. Mas não, reagi, estou a fazer drama em excesso: nem a situação é assim tão grave nem estamos, sequer, no mar, isto é ainda a foz do Rio das Pérolas.
Olhei à minha volta, tanto quanto a chuva me permitia abrir os olhos. Jasmim mantinha-se à proa, bem agarrada ao cordame. O Tio Pac substituíra Chen-Lo ao leme. E o seu rosto estava agora claramente apreensivo e não tardei a perceber que ele tentava, em vão, modificar a rota do junco, tentava, em vão, o regresso. 

Passáramos muito além de Coloane. Ainda julguei ver, ao longe, o mastro do posto da Polícia Marítima, onde dançava loucamente o Sinal Nove de tufão, mas isso é impossível, não posso tê-lo avistado àquela distância e na posição em que nos encontrávamos.
Não sei por quanto tempo navegámos, se é que se pode chamar navegação àquela luta inglória. O tempo pode ser uma noção subjectiva.
Mas não podiam ser minutos somente, nem sequer meia hora, porque as minhas mãos, os meus braços, as minhas pernas acusavam já um cansaço crescente. E não podia dar-lhes repouso, pois se o fizesse voaria borda fora...
Como voou borda fora o rádio de pilhas, vindo não sei de onde, apenas sei que o vi passar e perder-se nas ondas. Aquele vento não era, definitivamente não era já um vento de Sinal Três.
E, de repente, pareceu redobrar a sua força. Agora, o junco todo empinava-se a cada vaga, depois apontava a proa às profundezas.
– A-Pac! – gritei. Ele não me respondeu, muito provavelmente não me ouviu. Olhei-o, estava de cabeça erguida ao céu e gritava o que me pareceu ser uma oração, mas não entendi o que dizia, o vento levou-lhe as palavras. Então, ao virar a cabeça na direcção da proa, veio-me um aperto ao estômago, porque Jasmim desaparecera.
Não havia a mínima possibilidade de ter abandonado a sua posição para se abrigar; ninguém seria capaz de dar um só passo, fazer um só movimento sem ser arrastado pelo vento e pelas vagas. Jasmim fora arrastada.
Mais uma vez, gritei por A-Pac. Ele continuava a orar, de cabeça virada ao alto, enquanto Chen-Lo lançara também as mãos ao leme para tentar estabilizar o junco. Um ruído seco: o mastro grande quebrou-se como um palito.
A-Pac gritou mais alto. E então, deu-se o segundo prodígio do dia.
Não serei capaz de o descrever em pormenor, as minhas recordações são confusas. Direi que à nossa volta uma vaga imensa ergueu-se. Foi uma cortina de água que se levantou, que rodeou completamente o junco. E no espaço assim delimitado o vento deixou de soprar; a embarcação tombou pesadamente sobre um leito liso e ficou imóvel, por instantes. Depois, ouvi o motor ronronar com pachorra e o Dragão Contente começou a navegar a direito, sem balanços...
Quem o conduzia, não sei. Porque Cheong-Pac e Chen-Lo haviam largado o leme, estavam ambos prostrados sobre as tábuas, como em adoração.
Eu também dei finalmente descanso a mãos e braços, mas não me lembro do que fiz. Não terei feito nada, nem um gesto, estava em choque, cansado de mais, espantado de mais para ser capaz de qualquer reacção. Sobre nós caía uma chuva grossa, ininterrupta, porém tombava a direito como se não houvesse já vento – e no entanto eu ouvia-lhe o mugido, além da cortina de água que nos protegia.
Quando ela se desfez, quando a água se abateu e pudemos observar a nossa posição, estávamos em Macau.
Ou melhor, à entrada do Porto Interior. À nossa frente, podíamos ver as destruições causadas pelo tufão – não muitas, porém espectaculares. Sentimos de novo o vento, mas era já fraco. E o junco avançava, com o motor sempre a ronronar – alegremente, quase poderia jurá-lo. Chen-Lo deitou as mãos ao leme, para a manobra.
E, a partir de então, eis a única coisa de que me recordo: quando finalmente a âncora foi lançada, surgiu do porão a figurinha frágil de Jasmim. Ao vê-la, soltei um grito (gritei muito, nesse dia). Ela olhou-me, sorriu.
– Que tens tu? Já não há razão para te assustares – disse-me numa troça amável. – De vez em quando, convém renovar os prodígios, se não as pessoas confundem-nos com as lendas.
Foi nessa altura que a febre tomou o meu corpo e não me lembro de mais nada.
O terceiro e último capítulo desta história passa-se no dia seguinte. Eu acordei muito cedo e tive a enorme surpresa de ver que estava em minha casa, na minha cama. Poderia facilmente julgar que tudo aquilo fora um pesadelo; no entanto, o tufão deixara o seu rasto em Macau. Reuni as forças ganhas durante o sono. Saí de casa e fui à procura do Tio Pac, porque tinha algumas perguntas muito importantes a fazer-lhe.
Não o encontrei nos lugares habituais. Finalmente, um garoto que era seu vizinho disse-me que ele devia encontrar-se no templo da Barra e foi para lá que me dirigi.
Vi-o logo, a colocar um gordo molho de pivetes diante da imagem da deusa A-Mah. Aproximei-me, abri a boca para falar-lhe, ele calou-me com um «Chut! Estou a rezar!».
Esperei durante uns bons cinco minutos. Por fim, já não podia conter-me: 
– A-Pac – murmurei – meu querido Tio Pac. O que é que nos aconteceu ontem? E quem será aquela rapariga, chamada Jasmim?
Ele atirou-me um olhar impaciente.
– Ainda perguntas quem é? Ainda perguntas?
Recolheu-se de novo em oração. De facto, pensei, esta pergunta é estúpida.
Fui então comprar um molho de pivetes tão grande como o dele, acendi-os e coloquei-os diante da estátua de A-Mah...

João Aguiar

Sem comentários:

Enviar um comentário