quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Três impressões sobre FERNANDO PESSOA


Espera-se então que eu fale, ainda que só um pouco — ou melhor: sobretudo só um pouco — sobre Fernando Pessoa.
Isto é, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade, um grande perigo e também um grande problema. Uma responsabilidade tendo em conta a personagem ilustre que constitui o tema; um perigo (para mim) porque eu não sou propriamente um estudioso, um especialista de Fernando Pessoa, limito-me a lê-lo de vez em quando; e um problema porque — o que é que não foi já dito sobre ele, em Portugal e no estrangeiro?
Assim, o meu olhar sobre Fernando Pessoa só pode ser pessoal e mesmo íntimo. Lamento, mas é tudo quanto tenho para dar…
E começo com uma daquelas coincidências que, como se sabe, não existem:
Antes — repito: algum tempo antes de receber o convite para participar neste encontro, eu tinha começado a ler, ou a reler, toda a poesia de Fernando Pessoa. Diariamente, umas páginas, ao pequeno-almoço. Eu sei que isto não se faz na boa sociedade, ler Pessoa ao pequeno-almoço. Mas enfim, podia ter-me dado para pior e é uma coisa que não faz mal a ninguém, de modo que não me importo com os comentários que possam fazer a este respeito.
Ora bem: é esta leitura, que ainda prossegue, a base para tudo, todo aquele pouco, que vou dizer. Uma leitura começada sem premeditação nem motivos ulteriores, sem ter em vista uma conferência, uma intervenção ou qualquer outro trabalho. Uma leitura feita porque sim, por puro prazer. Daí que as minhas impressões sejam, digamos, as de um leitor inocente, que não leu tudo quanto há sobre Pessoa, que, neste assunto, quase só se limita a ler Pessoa.
Também uma leitura sistemática; e devo dizer que é a primeira vez que a faço da obra poética — em português — de Fernando Pessoa. Ora, uma leitura sistemática dá-nos uma perspectiva diferente daquela que se tem, por exemplo, lendo apenas a Mensagem ou outros poemas seleccionados.

1 — Passemos então à primeira impressão que tenho recolhido. Ela é de proximidade, de familiaridade
Não comecem já a pensar coisas; não estou a comparar-me a Fernando Pessoa, não estou, sequer, a tentar colocar-me à sua sombra. Não é isso. O que sucede é que, numa leitura da poesia completa de qualquer autor, chegam até nós, juntamente com os poemas excelentes, aqueles que ficaram inacabados. E ainda os poemas imperfeitos. E estes também existem, acho eu, atrevo-me a achar, no espólio deixado por Pessoa.  Não é pecado dizê-lo, atrevo-me também a pensar.
Ora, justamente, essa mesma imperfeição, encontrada num Fernando Pessoa, torna-no-lo mais familiar, mais próximo. Por um lado, quebra um pouco a rigidez da quase idolatria que muitos lhe votam; por outro lado, o facto de nem mesmo essas imperfeições serem de molde a diminuí-lo, mostra um pouco a dimensão do seu génio.
Dou como exemplo — sei que esta é uma visão muito, muito subjectiva — o poema Antemanhã, da Mensagem. Nunca gostei muito dele e desta vez, ao relê-lo, pareceu-me uma espécie de rascunho para o célebre O Mostrengo, que esse, vale a sua celebridade. Mas isso é impossível, porque O Mostrengo é muito anterior. E então, Antemanhã surge-me como um regresso ao discurso do primeiro poema e penso que esses regressos nunca são aconselháveis: terminado um poema, deve-se seguir em frente e não voltar atrás. [António Botto…]
Mas… continuemos na senda do sacrilégio… o próprio «falhanço» que aos meus olhos é Antemanhã humaniza, também aos meus olhos, a figura do poeta. E, claro, bem estaríamos nós se todos os falhanços na literatura portuguesa fossem assim.

2 — A segunda impressão que recolhi foi a da surpresa, ou melhor, a das surpresas que ele nos proporciona. Quero eu referir-me a isto: mesmo num poema que eu (e sublinho o eu por se tratar, uma vez mais, de um juízo subjectivo) considero imperfeito, se encontram, nada raramente, versos magníficos. E também, neste tipo de leitura que tenho vindo a fazer, de começar numa ponta e acabar na outra, há poemas que, num conjunto de qualidade sempre apreciável, sobressaem como… a figura que me vem à mente é: como jóias. Sobressaem, direi até literalmente, como jóias. Dou, como exemplos, aquele poema hermético em que se lê: A morte é a curva da estrada / morrer é só não ser visto; ou, na Mensagem… mas há tantos, na Mensagem! Enfim, os dois que são dedicados ao Infante D. Henrique, o que é dedicado ao Infante Santo, o Mostrengo, o poema final, Nevoeiro. Poderia, evidentemente, multiplicar os exemplos e repare-se: cada um desses poemas, por si só, definiria um grande poeta.

3 — E a terceira impressão: a de que Pessoa se desmentiu a si próprio.
O poeta pode ser um fingidor, mas não finge tão completamente que não deixe ficar nos seus versos algo que, tomado no conjunto, é muito parecido com um verdadeiro auto-retrato. Sobretudo quando esse poeta é tão completo, tão rico em temática e expressão, como Fernando Pessoa.
Refiro-me, ao dizer isto, à poesia ortónima, a poesia escrita sob o seu nome, isto é: não considerando, de momento, os heterónimos. Claro, os heterónimos vêm completar o quadro, mas tomá-los agora em consideração obrigar-me-ia a alargar-me demasiado. Portanto, tomemos apenas como referência os poemas escritos por «Pessoa-Pessoa»: o seu conjunto diz-nos muito, muitíssimo sobre a vida íntima do poeta, sobre a sua maneira de ser, sobre as suas preocupações. Para o conhecermos, quase não precisamos de escritos suplementares — cartas, páginas íntimas, etc., — nem de testemunhos contemporâneos. É possível, através da leitura seguida desses poemas, seguir os traços do retrato que ele fez de si mesmo. Um retrato verdadeiro e coerente, até nas suas contradições. Nele vemos como Pessoa, muito humanamente, oscilava entre as certezas e as firmezas dos poemas herméticos, em que transmite uma mensagem, e as dúvidas, os desânimos, as fraquezas, em que a mensagem se nega. É o retrato de um atormentado. Dizer que é também o retrato de um génio — que, ainda por cima, não se ignora como tal — é já um estafado lugar-comum. Mas continua a ser verdade.
E, enfim, se juntarmos à poesia ortónima a dos heterónimos, semi-heterónimos e pseudónimos, em português e inglês, teremos então aquele retrato completo em toda a sua assombrosa complexidade.
Será que importa dizer tudo isto? Não sei. Foi já dito tanta vez, de tantas maneiras.
Uma coisa eu sei: que importa ler.
É bastante mais importante ler Fernando Pessoa do que falar sobre Fernando Pessoa. Estamos, julgo eu, espero eu, num sítio ideal para o fazer. Vão às estantes, por favor, peguem nos seus poemas e leiam-nos
João Aguiar

J. Sousa - Serra de Sintra - "Casa do Cantoneiro" – Óleo sobre tela


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