sexta-feira, 19 de novembro de 2010

OS COMEDORES DE PÉROLAS



PORTA DO ARCO, ORIENTE DO ENTENDIMENTO

Há cinco anos, encontrava-me num quarto de hotel, em Macau, sentado diante de um computador portátil, a escrever o final do rascunho de um romance intitulado Os Comedores de Pérolas. E, nos intervalos, pensava: estou a viver um momento único, é uma experiência emocionante; mas é também, com certeza, a última vez que venho a Macau, de modo que preciso de acabar depressa para aproveitar o tempo.

Hoje, encontro-me num quarto de hotel, em Macau, sentado diante de um computador portátil, a escrever o início de uma crónica.
Eu nasci com esta maravilhosa aptidão: só muito raramente faço previsões de qualquer espécie, mas quando as faço - erro quase sempre.
No decorrer destes cinco anos, fiz, sobre Macau, uma outra previsão. Reflecti que, pensando bem, e embora sentisse uma secreta pena, seria afinal preferível não voltar ao Território, porque a Macau pela qual me tinha apaixonado ia desintegrar-se, desaparecer rapidamente.
Ia desaparecer a cidade velha - até, quem sabe, o Largo do Leal Senado, mais a Travessa do Bispo e a Rua da Palha, que tantas vezes me levara a São Paulo enquanto olhava, basbaque entre centenas de outros, as lojas de inevitáveis quinquilharias e de roupa vely cheap, no dizer ou na sugestão de vozes que ocasionalmente tentavam mesmo um português aproximativo mas talvez por isso mais cordial ainda. E aquela atmosfera única no mundo, mescla de pressa e lazer descontraído, mescla de línguas, cheiros, usos, hábitos e comeres, mescla de sangues e de sentimentos, mescla de pragmatismo e (perdoem-me, sim?) de poesia. E Nossa Senhora e Kun Iam olhando-se de frente com um discreto sorriso.
Tudo isso, e muito mais, perdido ou em desagregação. Desagregação implicitamente confirmada por notícias esporádicas que os media me traziam, vagas e convencionais em caso de mais uma inauguração, deliciadamente pormenorizadas em tudo o que se referia às proezas do crime organizado e outras coisas sombrias.
Melhor não voltar, então. Mas voltei.
No entanto, sentia-me distanciado, sentia-me quase turista, suprema ignomínia para quem tivera um caso de amor com Macau.  Era um sentimento desconfortável.  A única justificação que encontrava para desculpar tanta frieza era dizer-me que esse amor, sejamos honestos e realistas, foi epidérmico, porque afinal de contas nunca lá vivi - de resto, nessa época a fonte do Lilau já estava contaminada ou seca, não sei bem, portanto nunca lhe bebi a água mágica. E depois, há certamente a prevista mudança para pior, sempre para pior, como é de regra no fado lusitano.
Este discurso mudo proferi-o eu, muito exactamente, junto à porta de embarque nº 24, no Aeroporto da Portela. Depois, a bordo, algures sobre o planeta, ouvi conversas e risos: dois jovens Chineses trocavam ideias e anedotas com duas senhoras. Eram, todos eles, professores. E as ideias e gracejos corriam em Português.
Muito mais tarde, com os olhos cansados e doridos, na fase inicial do jet lag, percorria de carro avenidas, ruas e largos, via confusamente coisas novas e ouvia confusamente os seus nomes, Arco do Oriente, Porta do Entendimento, Fonte Cibernética; e depois, mais tarde ainda, o Largo do Leal Senado, que afinal ainda lá estava, só que, parecia-me, mais bonito. Mas tudo amalgamado no meu cansaço e, sobretudo, nas cores, nas luzes e nos ruídos, a ponto de se fundir e se confundir, Porta do Arco e Oriente do Entendimento.
Sensação estranhamente familiar, esse atordoamento. Foi, afinal, como da primeira vez.
Aí, lembrei-me então daquela minha magnífica faculdade, ser o nabo-mor das previsões. Mas o verdadeiro choque foi, no dia seguinte, à luz do sol, a imprevista alegria de rever tudo aquilo, gente, casas, árvores, jardins, lojas que vira cinco anos antes. Incluindo, já se sabe, a Mariazinha.
Essa alegria íntima, repito, foi o verdadeiro choque, a verdadeira surpresa. A que se juntava uma espécie de orgulho (ridículo, porque em nada contribuí para isso) de ver algumas das coisas que vieram ao longo da mudança.
Onde já vou, Santo Deus. Vejo daqui o sorriso comiserado dos veteranos e compreendo-os. Sei, evidentemente, que muitos pontos negros me escapam nesta paisagem e penitencio-me pelo entusiasmo. Contudo, vou também pensando que há algo de bom nos olhos da ignorância, que são também os da inocência. Porque eles conseguem ver, ainda, o que os outros já deixaram de ver. E com os diabos, não chamem aquilo que chamam ao Arco do Oriente. O que teria  eu de chamar, então, ao novo horror que recentemente brotou no alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa?
Final em forma de súplica: guardem, ao menos, um pouco da desordem. Um pouco do velho casario. Acabar com o lixo nas ruas é óptimo. Retirar o min eléctrico e clandestino é necessário, embora triste. Mas sacrificar a confusão das ruelas no altar da Imobiliária é matar a alma de Macau. E matar almas ou corpos sempre foi e sempre será um crime.

João Aguiar - Macau - 1997

Sem comentários:

Enviar um comentário